De acordo com dados mais recentes, 15,8% da população brasileira não conta com acesso à água, 44,2% não possuem coleta de esgoto e apenas 51,2% do esgoto gerado é tratado
Quarta-feira. Maria vive em uma grande capital brasileira, como tantas outras grandes capitais ao redor do mundo. Mora sozinha em uma casa localizada em um bairro simples e não muito afastado do centro. Apesar de ter carro, opta, para economizar dinheiro, trabalhar todo dia de trem. Apesar de sempre cheio, o trem é moderno, rápido e conta com ar-condicionado (que as vezes é até muito gelado). Ela gosta de aproveitar o tempo da viagem ouvindo o seu podcast preferido. O bairro onde fica sua empresa, um dos principais centros comerciais da cidade, conta com calçadas largas e arborizadas, com um asfalto impecável e muitos carros modernos indo e vindo enquanto um mar de pessoas apressadas, como a Maria, tenta atravessar a rua, aguardando um semáforo sonoro que teima em demorar.
O prédio onde ela trabalha possui 15 andares, todo em vidro e com uma arquitetura arrojada. De acordo com uma amiga de Maria, mais entendida no assunto, o edifício foi projetado por um renomado arquiteto “gringo” que desenhou apenas quatro prédios e se aposentou, indo viver com os bisões no vale de algum rio americano. Maria trabalha por oito horas, como tantas pessoas em tantas outras grandes capitais do mundo, e vai para casa. Corre para o seu curso online de especialização. Depois disso, o seu ritual noturno das últimas semanas, repetido nessa quarta-feira, é fazer um lanche leve e assistir no streaming um novo episódio de sua série de suspense favorita.
Maria tem uma vida relativamente comum e semelhante a tantas outras pessoas, que moram em tantas outras grandes capitais do Brasil e do mundo, correto? Sim e não. Apesar de todas essas semelhanças, o bairro onde Maria mora não conta com coleta, tratamento de esgoto e oferta de água potável adequada. Apesar do aluguel ser bem mais barato, um dos motivos para a permanência de Maria por ali, a verdade é que às vezes não vem água da rua por três dias seguidos. O que salva é a caixa-d’água que ela instalou no fim do ano passado. O esgoto é despejado em um rio próximo sem tratamento, rio que dizem abastecer esta região de água. Maria adoece frequentemente sem saber ao certo o motivo, muitas vezes tendo que faltar ao trabalho e ao curso de especialização.
A realidade de Maria, personagem fictícia que usei como exemplo é, infelizmente, a realidade de muitas brasileiras e brasileiros. Essa vida que mescla modernidade e infraestrutura de qualidade em muitos pontos, porém com um grande atraso em outros. Considerando que existem registros de saneamento que datam da Idade Antiga, como fazer para que haja de fato a universalização da coleta e tratamento do esgoto e da oferta de água potável 24 hrs por dia nos dias de hoje?
De acordo com os dados mais recentes do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS-21), disponíveis no Painel Saneamento Brasil, 15,8% da população brasileira não conta com acesso à água, 44,2% não possuem coleta de esgoto e apenas 51,2% do esgoto gerado é tratado. Isso significa cerca de 5,5 mil piscinas olímpicas de esgoto descartadas por dia na natureza, o que representa mais de 1,6 milhão de piscinas olímpicas de esgoto bruto sendo lançadas em nossos rios e mares entre janeiro e outubro 2023.
Isso gera um impacto extremamente negativo para, entre outros inúmeros pontos, a saúde da população, aumentando a incidência de diversas doenças, como diarreias e infecções gastrointestinais. De acordo com o estudo “Benefícios Econômicos e Sociais da Expansão do Saneamento Brasileiro 2022”, produzido pelo Instituto Trata Brasil em parceria com a consultoria EX ANTE, estima-se que se universalizado o saneamento, teríamos uma redução de custos com saúde de R$ 25,1 bilhões. Com menos doenças, aumenta-se a produtividade, levando a um aumento de renda de R$ 22 bilhões ao ano até 2040. De modo geral, os trabalhadores que residem em moradias com acesso ao saneamento básico ganham 83% a mais do que aqueles sem acesso ao serviço.
Outro motivo para investirmos no saneamento é o seu impacto na educação dos jovens. De acordo com dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) de 2021, a nota média do ENEM de quem conta com banheiro em casa é cerca de 14% maior do que a de quem não conta. Já o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE 2021) indica que, em média, pessoas que contam em suas residências com saneamento básico possuem 9,18 anos de educação formal, comparado aos 5,31 anos de pessoas que não contam com essa modalidade de infraestrutura.
De acordo com o mesmo estudo, a universalização do saneamento pode gerar até R$ 1,4 trilhão em benefícios socioeconômicos até 2040. Ganha a população com mais saúde e bem-estar, ganha o Estado, ganha o país. Motivos para a universalização, como vistos acima, não faltam. O que ainda falta, infelizmente, é colocar o tema em pauta, dar luz e priorizar investimentos para a solução de um problema econômico e social tão importante para que as milhões de “Marias”, como as do nosso exemplo, consigam viver bem e desenvolver plenamente todo o seu potencial.
* Luana Siewert Pretto é Engenheira Civil (UFSC), com mestrado na área de Análise Multicritério (UFSC) e pós-graduada em Gestão de Projetos (FGV). Atuou na concessionária estadual de saneamento básico de Santa Catarina (CASAN),) e como presidente da Empresa Pública municipal de saneamento básico Companhia Águas de Joinville. Atualmente, é Presidente Executiva do Instituto Trata Brasil.
Fonte do artigo: https://exame.com/brasil/o-drama-cotidiano-de-quem-vive-sem-agua-e-coleta-de-esgoto/